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domingo, 16 de dezembro de 2012

Grand´ Mere Buffet: Multiplicação dos pães...


A técnica de fermentação natural, o levain, inventada pelos egípcios há 300 anos a.C., foi redescoberta pelos padeiros gourmet que investem em panificação artesanal. Tratados com verdadeiro status de relíquia, alguns levains da cidade têm mais de três gerações.

Depois do auge das megapadarias paulistanas, nas quais o pão é apenas um mero detalhe, é possível observar na cidade um fenômeno lento e silencioso, de retorno à essência da panificação. E é impossível pensar em pão artesanal sem fermento natural. Velho conhecido das tradicionais padarias italianas da cidade, este tipo de levedura começa a ganhar espaço nas boulangeries artesanais. Afinal, a mistura de farinha de trigo e água, em contato com o ar, resulta em micro-organismos que conferem ao pão uma casca crocante e um aroma inigualável. O pão com levedura teria surgido no Egito, por volta de 300 a.C. A técnica da fermentação natural foi descoberta por acaso, quando uma massa à base de água e farinha foi esquecida a céu aberto. O calor extremo e a atmosfera permitiram a multiplicação de bactérias. Ao ser levado ao forno, o pão aumentou de volume. Para obter o mesmo resultado, passou-se a unir esta massa “contaminada” a outra, recém-preparada. O uso exclusivo do levain se deu até o final do século 19, quando surgiram os fermentos industrializados, com levedura selecionada. Muito mais potentes do que os micro-organismos presentes no ar, passaram a ser utilizados para acelerar o processo de fermentação. Entre os micro-organismos presentes na fermentação, o mais comum é a Saccharomyces cerevisiae, também responsável pela fermentação da cerveja.
Conhecido pela longevidade, um fermento biológico pode atravessar um século, se o padeiro seguir todos os cuidados. Segundo o padeiro Pedro Calvo, da padaria Santo Pão, “é preciso seguir uma rotina no melhor estilo Tamagotchi (brinquedo da década de 90, que você tinha que alimentar constantemente)”. Para manter o processo de proliferação das bactérias é preciso acrescentar água e farinha, na quantidade correta. Cada padeiro utiliza sua proporção para alimentar o fermento. No caso do padeiro Rogério Shimura, da R. Shimura Consultoria e Escola de Panificação: para cada 50% de levain, ele utiliza 60% de água e 100% de farinha de trigo.

O tutorial do fermento

O passo a passo da fermentação natural
A reação química
Como todo ser vivo, os micro-organismos precisam de alimento. Para se proliferar, a bactéria consome o carboidrato presente na farinha e libera dióxido de carbono (CO2), responsável pelo crescimento do pão. O glúten, presente na farinha, cria uma barreira de proteção para que o gás possa se expandir e fazer o pão crescer. O fermento deve ser constantemente alimentado. Caso contrário, os micro-organismos se autoconsomem e o fermento morre.
Receita de fermento
Para começar o próprio levain, o padeiro Pedro Calvo ensina o passo a passo:
1. Misture 50 gramas de farinha de trigo e 50 gramas de água. Deixe em temperatura ambiente.
2.No segundo dia, acrescente mais 50 gramas de farinha de trigo e 50 gramas de água.
3. No dia seguinte, repita o processo.
4. No quarto dia, começarão a surgir algumas bolhas.
A fermentação inicial é conhecida como wild yeast (fermento selvagem).
5. Para alimentar pela primeira vez: depois de todo esse processo, haverá 400 gramas de massa. Para essa quantidade, adicione 800 gramas de farinha e 800 gramas de água. Depois de alimentar pela primeira vez, conserve o fermento em geladeira.
6. Separe metade do fermento e descarte. Segundo o chef, os micro-organismos ainda não estão fortes o suficiente. Repita o processo de alimentá-lo e, no dia seguinte, está pronto para usar.

Bactérias estrangeiras


Até 2009, Shimura utilizava em seus pães um fermento que aprendeu a preparar com a mãe, na época em que a família tinha uma padaria em Atibaia, interior de São Paulo. À base de caldo de cana fermentado, farinha de trigo e água, trazia um aroma e sabor ácidos, que se tornou a marca registrada dos pães de Shimura. Ele mudou seu estilo de fermentação quando ganhou de presente, de um aluno, uma muda de 10 gramas, que trouxe de uma tradicional padaria na Califórnia (EUA). A muda tinha nada menos do que 159 anos. “Ele trouxe cinco mudas, quatro na mala e uma no bolso do paletó. Na alfândega, apreenderam as quatro da mala e só sobrou a do bolso, que ele me deu. Ele disse que eu cuidaria melhor do que ele”, lembra.
Em sua escola de panificação, que Shimura inaugura em breve, ele instalou uma geladeira de 2,60 por 2,60 metros, só para guardar o fermento.
Quem também utiliza fermento natural é Paulo König, na Le Pain Quotidien. A rede de padarias belga, que foi inaugurada este ano em São Paulo, oferece pães artesanais orgânicos, numa atmosfera rústica. Obviamente, neste contexto, o fermento é peça fundamental. “Trouxe na mala 20 quilos de fermento artesanal, do treinamento da Le Pain Quotidien, em Nova York. O fermento tinha mais de 30 anos. Juntei o que eu tinha com outro que ganhei de um amigo que veio do norte da França e tinha 90 anos – e fiz um novo para a inauguração da padaria”.

Jovens bactérias

Marcos Carnero, da Na Bicicleta Boulangerie, também segue a mesma linha, ao preparar pães com ingredientes orgânicos e fermentação artesanal. Por enquanto, o padeiro ainda não tem um ponto de venda, mas, com sua “padaria itinerante”, costuma expor seus produtos em eventos pela cidade. Sempre a bordo de sua bicicleta, um modelo feito em aço galvanizado, com um baú de madeira na parte frontal, que recria as bicicletas de entrega utilizadas pelos padeiros antigamente. “Eu quis resgatar uma tradição do interior das Minas Gerais”, conta ele.
Apesar de fazer fermento desde a adolescência, Marcos utiliza para confeccionar seus pães, da linha que ele chama de Rustic Joy, uma levedura, ou “fermento selvagem”, que tem quatro anos e que começou a cultivar em São Paulo. À base de maçã verde, açúcar mascavo e água, é fermentado por 10 dias em temperatura ambiente.
Pedro, da Santo Pão, começou seu fermento do zero, há três anos, quando inaugurou sua pequena padaria artesanal em Pinheiros. Dos 17 tipos de pães oferecidos na boulangerie, em 10 ele utiliza fermentação natural, à base de água e farinha de trigo. Com o tempo, ele desenvolveu um fermento com farinha de centeio. “Qualquer tipo de farinha panificável, ou seja, que contenha glúten, serve para fazer fermento natural. Além da farinha de trigo branca, pode-se utilizar integral, centeio, entre outras”, explica o padeiro. Segundo ele, o fermento de centeio, elaborado especialmente para este tipo de pão faz toda a diferença. “O pão fica com um sabor mais complexo e acentuado, com um toque amargo, traço típico do centeio”, descreve ele.

Fermento reserva

Quem trabalha com fermento natural precisa se prevenir de alguns incidentes. Por isso, além do que fica na padaria, os padeiros têm uma reserva, um back-up. Certa vez, um dos estagiários de Shimura se esqueceu de alimentar o fermento na ausência do padeiro, que estava viajando. Em uma semana, ele utilizou todo o fermento da padaria. “Tenho guardado um back-up de 15 gramas do fermento congelado, em caso de incidentes como esse”.
Pedro também já sofreu poucas e boas com o seu fermento. “Outro dia, uma funcionária que fica no balcão foi escalada para limpar a geladeira. Quando ela abriu o balde onde fica o fermento, viu uma massa esquisita e sentiu um aroma ácido. Achou que era massa estragada e separou para jogar fora. Por sorte, vi a tempo”, conta. Desde então, Pedro mantém um pouco de fermento no congelador de sua casa, que ele troca a cada dois meses. Paulo também faz o mesmo, mas ele nem pode pensar em algum acidente envolvendo seu fermento. “Perder o fermento? Rezo todos os dias para que isso não aconteça”, brinca o padeiro da Le Pain Quotidien.

Lendas do fermento

Para o professor de panificação e confeitaria da FMU, Dario Vianna, essa história de fermento antigo é lenda. “Poderia muito bem dizer que o fermento que uso na faculdade tem 13 anos, mas não acredito nisso. Afinal, depois de anos de alimentação, o fermento ganhou uma estrutura completamente diferente”, afirma. Pedro concorda com Dario. “Muitos dizem que ganharam um fermento do exterior. Porém, com o tempo, se alimentado aqui, logo vai se proliferar com as bactérias daqui e não vai sobrar nada do original”, afirma o padeiro da Santo Pão. Já Paulo, da Le Pain Quotidien, discorda: “O importante não é onde o fermento foi feito, mas o modo como é cuidado e alimentado”.
Seja como for, o professor da FMU ressalta que o importante é dar um upgrade ao produto. “São pães especiais, direcionados para um público gourmet. Sem dúvida, o processo artesanal agrega mais valor ao produto”.
O padeiro da Le Pain Quotidien reforça essa tese. “Por exemplo, hoje o fermento foi alimentado a uma da tarde. Amanhã, às 7 horas da manhã, parte do levain é utilizado para bater a massa, que descansa de seis a sete horas. O pão vai para o forno,depois para maturação.  Afinal, o pão continua fermentando depois de assado. Só chegará para o cliente na sexta-feira. É um processo trabalhoso, mas que resulta num produto ímpar”, diz Paulo.
Por Cintia Oliveira
Fotos Daniel Cancini

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