Do vinho para a água: nada mais gourmet hoje do que degustar a fórmula líquida mais simples da natureza, a célebre H2O, como se fosse, além de uma commodity valiosíssima, uma bebida dos deuses – como efetivamente é.
Por Celso Arnaldo Araujo Fotos Sérgio Carvalho
Informa a mitologia que, durante um de seus costumeiros ataques de fúria, o deus do mar, Poseidon, secou todos os rios e lagos da Grécia – transformando-a num Nordeste. Mas quando uma jovem e bela sedenta lhe foi implorar por um fio d´água, Poseidon triscou uma pedra com seu tridente e imediatamente dela surgiu uma fonte de água cristalina – seria essa a origem de todas as águas minerais. Nos últimos milhares de anos, muita água rolou dessas fontes – e o máximo que os mortais comuns poderiam dizer sobre elas e é se eram naturais ou gasosas. Mas recentemente, com o avanço da alta gastronomia, as minerais ganharam status de líquido degustável – com todos os critérios de análise sensorial a que as bebidas mais complexas têm direito. Desde então, cresce o número de restaurantes estrelados que oferecem cartas de água a seus clientes, para que enófilos e sommeliers se engajem em degustações gourmet do líquido que, em tese, deveria ser incolor, inodoro e insípido – no entanto, acredite, os analistas detectam nele propriedades complexas, como equilíbrio, leveza, frescor, estrutura, persistência, pois cada uma tem um “aquífero” diferente, ou seja, um equivalente ao terroir para o vinho. Brotando do solo, a diferentes profundidades, ela incorpora os elementos das camadas de terreno que atravessa até jorrar na superfície e ser engarrafada. “Tudo vai para a água”, dizem os especialistas. Por isso, a água, no nariz e na boca desses degustadores bem treinados, é um show de sensações. Vamos matar a sede com eles? No tempo de nossos avós, falar em águas minerais era lembrar de pacatas “estações de águas” do interior de Minas Gerais e de São Paulo. Hoje, águas minerais estão associadas a sensações mais complexas, que envolvem paladar e harmonizações. Um grande entusiasta da água mineral como item gourmet é o analista sensorial Renato Frascino – pioneiro brasileiro no upgrade das minerais. É ele quem comanda nossa degustação – semelhante às que já promoveu em várias cidades. O local é o Espaço Kennzur, um centro de bem-estar cinco estrelas no qual existe um ”espaço das águas”, ali instalado com consultoria de Frascino, e uma aquateca de minerais com diferentes graus de estruturas organolépticas e sensoriais.
Os nove elementos
Foi nesse ambiente “aquático” que se deu nossa prova das águas – envolvendo cinco marcas internacionais de primeira linha, com e sem gás. Segundo Frascino, a ordem natural de uma degustação de águas é sempre das mais leves, sem gás, para as mais pesadas, gasosas, das mais hidratantes às mais digestivas. Esse “tudo” do solo que se incorpora às águas mineiras pode ser resumido em nove elementos: estrôncio, bicarbonatos, sulfatos, fluoreto, cloretos, cálcio, magnésio, potássio e sódio. De acordo com a presença maior ou menor de cada uma dessas substâncias, a água terá características particulares em termos de frescor, efervescência, limpidez, acidez, leveza, equilíbrio e persistência. Bicarbonatos acima de 120 mg, por exemplo, são mais digestivos – abaixo, hidratantes. Esses são os parâmetros que regem a degustação de águas ditas gourmet – simplesmente matar a sede é obrigação de qualquer água. Foi o que constataram nossos degustadores: além de Frascino, Walter Tommasi, consultor de vinhos de GoWhere Gastronomia, o sommelier Gustavo Massa Beltrati e a sommelière Sonia Denicol, mais conhecida comoMadame do Vinho.
Por água abaixo
A primeira água a rolar no Espaço Kennzur foi a Panna, egressa da região das montanhas da Toscana. Por isso, segundo Renato, tem a estrutura geológica do mármore de Carrara – com a cremosidade láctea do queijo brie. É uma espécie de Sauvignon Blanc das águas. Frascino observa – e os demais degustadores concordam – que no nariz a água remete à natureza, pedra, areia. Por isso, vai bem com vinhos brancos leves e pratos igualmente leves, como uma boa caçarola de alvas vieiras. Em seguida, serve-se uma das atuais sensações entre as águas gourmet – a Voss, norueguesa, que se destaca de cara pelo design de sua garrafa, semelhante a um gigantesco vidro de perfume, o que fez dela um fenômeno entre o público jovem mais descolado. Ainda uma criança (1998) perto das célebres minerais europeias, a Voss agradou pelo toque salgado e cítrico – que a recomenda como par para um bacalhau. Fazendo dobradinha com vinhos, nossos degustadores sugerem brancos barricados ou tintos Pinot Noir. A terceira água foi a nacional Pedra Azul, de Marechal Floriano, a 100 quilômetros de Vitória. Os provadores identificam uma água menos fresca, com toque avinagrado, evocando os solos graníticos terrosos, típicos do aquífero daquela região. Iria bem com uma moqueca de siri leve, vinhos Semillon e espumantes. A quarta água é outra nacional, a Versant, de terroirs gaúchos onde predomina a formação basáltica do solo. Ao provar, um dos degustadores anuncia: é mais leve até aqui, com um toque verde, floral. Muito bem com linguado ou truta e vinhos sem madeira.
Com gás é outra história
A água número cinco inaugura a fase gasosa de nossa degustação. Trata-se da Badoit, centenária marca francesa, irmã da Evian, produzidas em St Galmier, sul da França, onde brota a 500 metros de profundidade. Uma água mais pesada e complexa, com perlage (borbulhas) mais intensa, incorporando a salinidade do solo. Observam os degustadores: bom par para bacalhau e produtos defumados, como arengue. E boa dobradinha com um Nebiolo italiano. Frascino saliva: “Eu tomaria com um jamón pata negra. Essa água deixaria a boca doce e amenizaria o sal”. Em seguida, outra Voss – sua versão com gás. Tem uma perlage ainda mais agressiva, com “borbulhas vesgas”, não uniformes e unidirecionadas. É altamente gastronômica, observa Frascino. Pede vinhos mais complexos, molhos fortes e gordurosos. É a vez de um clássico entre as águas: a Perrier, nascida em 1867, nas fontes de Vergèze, França. “Fogos de artifício na boca”, descreve um provador. Conclusão: não recomendada para gastronomia. Mas perfeita para acompanhar um scotch. “É a mais club soda das águas”, por sua rusticidade. Enfim, uma Pedras Salgadas – mineral portuguesa de grande prestígio no universo gastronômico, extraída das célebres fontes de Vila Real. Uma legítima força da natureza, a mais digestiva de todas servidas na prova. O “gosto de mar” e de salmoura é bastante presente e recomenda uma casadinha não só com bacalhau como com carnes de parrilla, suculentas, e vinhos barricados, quem sabe um Barbaresco. Nessa sequência inebriante de águas, que revelaram aos nossos apurados analistas propriedades antes só identificadas em bebidas mais elaboradas, a segunda amostra, a Voss sem gás, pelos pontos anotados, seria declarada vencedora – se se tratasse de um concurso.
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